Prosa às motas – por Lidia Jorge

"Uma Prosa dedicada às motos

Se o automóvel é o primogénito do coche antigo, assente em várias rodas e puxado por muitos cavalos, não há dúvida de que a moto é o cavalo ele mesmo. Na verdade muitos dirão que lhe falta a crina, o relincho e o suor do animal de carne e sangue. Também a vontade própria que lhe permitia os coices, e a dependência de um alimento compacto que fazia da besta um vizinho do seu dono. Mas, em contrapartida, as duas rodas transformaram-no em alguma coisa que consegue outras distâncias, e permitiram realizar a infatigabilidade que no bicho era impensável supor. Em tudo o mais se assemelham e cumprem a mesma função.

Em cima da mota a pessoa é independente, e o selim, feito para um só, permite quando muito o aconchego de um outro que faz companhia e se leva ao longe. Abraçado pelas pernas ao animal de aço, também o corpo se expõe ao vento e à tracção do ar, e realiza assim o que o risco sempre significou para o homem quando jovem. A exigência de força física, da agilidade, da versatilidade da cintura, a coordenação dos movimentos, tornam-no um objecto próprio para heróis.

A exiguidade da dimensão permite que ultrapasse rápido, se esgueire por entre nesgas de trânsito e deixe para trás aqueles que obrigatoriamente se imobilizam junto ao chão, castigados pela comodidade das quatro rodas. Há na desenvoltura dos motociclistas um atrevimento que faz sonhar. Assim sobre a moto o homem coloca ardor de ser audaz e encontra a possibilidade de ser temerário, já que as sociedades modernas lhe diminuíram as oportunidades de ser valente com o seu próprio corpo. Por isso mesmo os franceses lhe chamam “siège de feu”, apenas porque não se lembraram de lhe chamar de cavalinho de oiro.

O jovem afaga o seu transporte, olha com desdém para o portal da casa, imagina a via livre onde poderá acocorar-se em novelo como se disparado, e as curvas em que poderá raspar as bermas como se caísse. Por vezes, em sítio próprio, a mota poderá saltar como se voasse. Todos os que lhe impedem essa trajectória de sonho e riscos são malquistos. Mas a chamada para esse denodo é alguma coisa mais forte do que o querer individual de cada um. Aliás, agora pelas estradas, os moços, em motas, andam grupos como nómadas. Fazem excursões e ocupam os espaços como bandos. São pequenos exércitos naturais à procura da sua própria cavalaria e da sua contenda. Eu gosto de os ver passar. Eles cumprem um destino de vida que os leva a fugir, com ruído e ferocidade, dos panos quentes, das mesas e das camas. A fugir do leite e das horas certas de dormir. Sem saberem, eles simulam a migração que os seus antepassados fizeram na sua idade, ao cruzar os continentes sem saber onde iriam parar. Foi assim que a terra se povoou. Nas suas cabeças passa um destino que se desconhece. Eles mesmo julgam que se rebelam e, contudo, obedecem a uma força da Natureza que os vai chamando. Por isso, quando passam produzindo o som inconfundível, entre ameaçador e gritante, tiro-lhes o meu chapéu, abrando o carro, deixo-os passar.

Mas nem todos abrandam diante dos cavalinhos de oiro. Há mesmo os que aceleram, ou apertam, ou perseguem, ou driblam ou que são simplesmente indiferentes.
Traçam tangentes como se não os vissem. Depois, há os camiões grandes, os que pesam várias toneladas e cujo motorista vai tão alto, sentado no seu trono, que mal dá pelas motas a passar. Se são dois camiões altos e pesam muito, e levam as grandes rodas expostas, e grandes cargas montadas, a estrada fica cheia de peso. Os rapazes das motas têm tanta pressa. Como vão esperar pelas manobras lentas dos grandes camiões das estradas, e pelas tangentes dos carros, protegidos por chapas e estofos?

A proteger o corpo dos ocupantes das motas, vai só um pedaço de fazenda, ou quanto muito, um blusão de cabedal. E a sua pressa é tão grande, e a noção de que os seus corpos são inatingíveis é tão altiva. E a confiança no piso, na máquina e na ausência de obstáculo é tão forte. O coração motorizado da máquina, batendo o coração do jovem, é um todo invencível que passa sem qualquer peso de montada. Sem qualquer necessidade de vénia ou descanso. Por isso abrando a marcha do meu carro e espero que passem todos para não lhe inibir a rota, nem lhes impedir o pensamento fixo. Não me quero juntar aos obstáculos que as mães foram pondo, até que as vontades dos seus filhos fossem mais fortes.

Eu respeito essas pequenas montadas conduzidas por pessoas que desejam coisas, com uma vontade muito maior do que elas mesmo têm. Eu já fiz tudo para contrariar essa vontade. Agora, porém, eu compreendo o trajecto que medeia entre a proibição e a mota.
Ao fundo da escada, o meu filho tem uma.

Autor: Lídia Jorge"

 

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One thought on “Prosa às motas – por Lidia Jorge

  1. Sendo Português e Motociclista, o que me apraz dizer são uma eternidade de elogios sentidos á Autora deste pequeno grande texto.
    Na verdade, já o conheço de há muitos anos e cada vez que o leio, sinto-me vivo e felizardo por ter uma moto.
    Se não fosse o “cavalo de ferro” não teria conhecido gente boa, não teria visitado sítios magníficos e acima de tudo, não teria feito parte da própria natureza.
    Sendo actualmente residente na Maison du Portugal, terei o maior prazer em receber Lídia Jorge no próximo dia 28 de Janeiro.
    Por favor, voe na escrita como nós na estrada!
    Bem Haja.

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