30 de agosto de 2013
• Aviso: este relato é de interesse particular e pessoal… provavelmente nada de especial dirá a quem o ler, porque o escrevi para mim e apenas tornei público para seguir a sequência da viagem… em termos turísticos vale o que vale… Espero que não achem de todo aborrecido! 😀
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Decidi voltar a Genève com o espírito da comemoração!
Eu que não sou nada de datas, de comemorações especiais, de “hoje estou triste ou contente por que é o dia tal” decidi visitar Genève com o espirito de “faz agora 20 anos!”
Genève será sempre aquele recanto da minha vida que ditou o ponto de viragem, o ponto em que eu pude ser eu à minha maneira, sem ninguém para cuidar ou para agradar, apenas eu e os meus sonhos e descobertas!
Em 1992 eu concorrera com um projeto de trabalho, de continuidade da minha obra, e em 1993 ganhava uma bolsa de estudos artísticos para um ano na Escola Superior de Belas Artes de Genève, hoje chamada “Haute école d’art et de design – Genève”. Não conhecia ninguém, nem na cidade nem no país, a bem dizer nem sabia muito bem onde ficava Genève! Embora eu tivesse concorrido para uma bolsa de estudos na Suíça, pensei que Genève seria uma outra forma de dizer Génova! Quanta ignorância!
Na época meti os meus livros mais importantes, os meus pinceis, as minha toneladas de latas de tinta em grandes sacos de viagem, tudo misturado com roupas, cadernos, toneladas de lápis e bonecos de peluche, e fui embora, com uma carga de mais de 50kg e uma carta de uma pessoa importante da TAP, para me deixarem viajar com todo aquele peso, sem pagar excesso de carga.
A coisa correu bem, a bolsa acabou por ser renovada e eu fiquei por lá de 1993 até 1995, estudando, pintando, escrevendo e desenhando como nunca fizera antes, pois era a primeira vez em muitos anos que eu recebia dinheiro para estudar, sem ter de ter um emprego, como acontecera por cá, durante os meus estudos…
E também foi a primeira vez na minha vida que fui tratada como artista plástica e não como aluna de pintura! Que sensação e quanta responsabilidade!
E eu dediquei este dia a percorrer alguns dos meus caminhos mais queridos na cidade!
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Comecei o dia observando finalmente o pneu da frente da minha motita…
Mal olhei para ele percebi que não olhar para ele antes foi a melhor coisa que podia ter feito, porque ele estava completamente liso e se eu tivesse constatado isso no dia anterior não teria conseguido conduzir decentemente até ali!
Bora lá visitar os meus amigos a ver se têm um sapatinho novo para a minha bonequinha!
Fui recebida com um “Olha, estou a conhecer esta moto! Quantos quilómetros já tem?”
“Olhe que não conhece!” – exclamei eu deixando o homem confuso.
“Claro que conheço a moto, já esteve aqui varias vezes com ela!” – é claro que ele lembrava-se da outra moto, a Magnífica, que foi ali varias vezes para ver pressão dos pneus e tal.
“Olhe que não foi esta! Esta é nova!”
Ficou muito surpreendido por eu ter comprado uma moto igualzinha à anterior, ficou encantado por saber que a Magnifica chegou à bonita quilometragem de 261.000km na minha mão e que continua vivendo feliz e mais tranquila na mão de outra pessoa e pediu-me meia hora para trocar o sapatinho da motita, não sem antes me dizer com ar de espanto “Diz que é nova e tem 36.000km?? Comprou usada?”
“Não, eu é que já fiz esses quilómetros todos com ela.”.
E fui passear para um recanto da cidade que fica logo ali, no ponto em que o Lago Leman se converte de novo no rio Rhone, em percursos de terra batida por entre árvores, como se estivéssemos longe da cidade, que está ali à porta.
Aquele rio sempre me fascinou, com todo o lago a descarregar nele, um lago imenso com mais de 500km² de área e diversas cidades e aldeias em seu redor e a água chega ali límpida e transparente, como se saísse da torneira naquele momento! É espantoso!
Ali ao lado há uns muros onde é permitido fazer grafitis e, no meu tempo, cheguei a fazer uns quantos a solo e com amigos! Fazer grandes pinturas sempre me apaixonou, ainda hoje não perco uma oportunidade de fazer um mural!
Como na época, hoje continua a haver por ali uma série de grafitis!
A montante fica a cidade e o lago…
E ao longe, pelo meio das casas pode-se ver o grande jato de água. Acho que ele é visível de quase todos os pontos da cidade!
E a meia hora passou, a moto devia estar pronta que aqueles homens não brincam em serviço!
E estava! Foi só pô-la na rua enquanto eu pagava e pronto!
Dá-se uma voltinha, atravessa-se a ponte e lá está o lago limpinho e transparente que até confunde!
E o jato de água!
Há números extraordinários ligados àquele jato: por aquele furinho são projetados 500 litros de água por segundo a uma velocidade de 200 km/h que a elevam a uma altitude de 140 metros, o que faz com que cheguem a estar no ar cerca de 7.000 litros para formar aquele imensa torre de água!
Quando a gente passa perto dele, se o vento mudar de direção, corremos o risco de apanhar um grande banho! Naquele dia estava pouco vento, por isso a água caia quase sobre si própria e a gente molhava-se um bocado ao passar para o outro lado, a ponta do cais! Claro que meti a máquina debaixo da blusa e passei! Eheheh
Passei muitas tardes ali sentada nos degraus do cais a estudar, a escrever e a desenhar, com aquela paisagem inspiradora como companhia…
Depois fui até Place Neuve, é ali que fica a Ópera de Genève e o Jardin des Bastions, onde fica a Universidade… onde fica tudo o que eu associo aos meus estudos e tempos de trabalho intelectual
Não era só eu que ia para ali “dar cabo da cabeça”, há sempre gente a jogar xadrez ou damas por ali e dão cabo da cabeça também!
Mas o sítio onde eu dava cabo da cabeça não era propriamente nos jogos à entrada do parque! Era mais à frente, onde me estendia no relvado e lia e escrevia por horas a fio! Pois é, quem diria que um pintor tem de ler e saber tanta coisa tão variada, como fazer uma tese sobre “Le sign et le signal visuel”?
Estamos no Jardin des Bastions, chama-se assim por ficar aos pés da muralha antiga da cidade. O jardim é lindíssimo e dá acesso ao edifício da universidade, a Uni Bastions, por isso os relvados, em tempo de primavera, estão frequentemente repletos de estudantes sentados a estudar… eu também ia para ali preparar-me para as apresentações dos meus temas em estudo….
No meio do parque, encostado à estrada que sobre na direção da zona alta da cidade, fica o muro dos reformadores, com as estátuas enormes dos 4 grandes fundadores do movimento da reforma protestante.
William Farel, João Calvino, Theodore Beza e John Knox. Os 3 primeiros diretamente ligados a Genève e sua universidade de e o ultimo ao protestantismo na Escócia.
Todo o muro está cheio de referências históricas e personagens ligadas à reforma.
No chão estão os brasões das partes envolvidas mas, pessoalmente sempre adorei o de Genève, com o seu galo e a chave! Lindo!
E mesmo em frente, lá está a universidade…
Um edifício extraordinário com 450 anos, onde eu passei alguns momentos memoráveis…
neste auditório!
A perspetiva desde o “púlpito” onde a gente fala é de respeito, sobretudo se imaginarmos todas aquelas cadeiras repletas de gente preparada para nos ouvir e pôr questões…
É uma sensação pisar o mesmo chão onde Calvino pisou, falar onde ele falou!
Quase em frente fica a Uni Dufour, um edifício em betão armado inspirado em Le Corbusier. Ali fica a parte administrativa e era lá que eu, e todos os bolseiros da Confederação, eramos recebidos e tratávamos de todos os assuntos relacionados com a nossa estadia, remuneração e pequenas coisas que surgissem. Era dali que partiam todas as iniciativas para nos levar a conhecer o país, convívios e outras ofertas dirigidas a nós!
Decidi pousar a moto e apanhar o autocarro ou o “tram” (metro, será?). Na pousada de Juventude dão-nos um passe para podermos usar todos os transportes públicos da cidade e eu quis dar uso au meu e fazer algumas linhas que eu usava quando lá vivi.
Ao contrario de cá, nada mudou! Os autocarros têm os mesmos números, fazem os mesmos trajetos e continuam a chegar exatamente à hora prevista!
A Rue de la Confederation fica logo a seguir e, quando passa a ser a Rue du Marché, lá estavam uns fulanos a desenhar no chão! Não resisti e desci ali mesmo!
Um dia saí para a rua com um grupo de alunos para pintarmos na rua e fomos precisamente para ali, com um grande rolo de papel cartonado e montes de caixas de pastel seco e fizemos uma coisa daquelas. Cada um tinha uma imagem de uma obra famosa que iria inserir numa imagem maior, ao vivo para a população ver.
A finalidade não era ganhar dinheiro, era apenas sentir a experiencia de pintar ao vivo e em conjunto. De repente as pessoas começaram a atirar moedas para cima do desenho! Aquilo era giro mas era uma chatice andar a catar moedas nas zonas onde o desenho já estava pronto pois o pastel não tinha fixador e estragavam-se pormenores ao tocar. Então eu tirei o chapéu, (sim, eu lá andava sempre de chapéu também) e pousei-o no chão, fora da zona do desenho e, espanto, as pessoas encheram-no de dinheiro por mais que uma vez! Tive de o esvaziar várias vezes! Acabamos por ir todos confraternizar com o lucro da obra e comemos bem pois, no final, o dinheiro era mesmo bastante!
Voltei a apanhar o autocarro… eu tinha de ir às Belas Artes, essa sim, a minha escola!
Aquele edifício é espantoso!
L’École des beaux-arts de Genève foi fundada em 1748, quando lá estive era chamada de École superieur d’art et design- ESAD e a partir de 2007 passou a ser a Haute école d’art et design – HEAD.
Entrei pela parte de trás… aquela escadaria sempre me fascinou!
Oh, entrar ali depois de tanto tempo teve o seu efeito…
Grandes portas de espelho, fascinaram-me! Quem teve a ideia é genial, pois a sensação que provoca é muito curiosa!
A escadaria… quantas vezes as subi carregada de tralhas, que o meu atelier era no 3º andar!
E lá estava o meu atelier… meu e de muita gente, claro!
Eu era assim na época, aqui junto com os meus meninos em dia de avaliações, uma foto que foi tirada para memória futura…
A tradição mantem-se, no final de cada semestre todos os ateliers são esvaziados do seu conteúdo, o chão limpo e as paredes pintadas de branco, para que sejam feitos os júris de avaliação.
Faz-se uma escala de todos os ateliers, de forma que cada aluno fique com uma sala para si, onde vai expor o seu trabalho para ser avaliado publicamente por um júri de 5 especialistas e toda a população que queria assistir!
Por isso o atelier estava tão limpinho e vazio naquele dia! Era agosto e os júris tinham sido no fim do ano letivo!
O mundo lá fora, olhando pela janela!
Oh aquelas portas de espelho! Lindas!
No andar de cima fica a maior parte dos ateliers, por isso os corredores estavam mais cheios das tralhas que tinham sido retiradas das salas!
Eu sentia que estava a ficar mais emocional… há coisas que tocam tão profundamente, não porque são particularmente belas, mas porque são particularmente amadas… eu podia ter ficado ali toda a minha vida… se não tivesse feito as escolhas menos acertadas…
Saí dali e fui caminhando pela redondeza. No meu caminho ficava a Igreja Russa.
Lembro-me que passava ali a cada passo, desenhei-a por diversas vezes…
Na outra ponta do quarteirão das belas Artes fica o Museu de Arte e História, com uma escultura do Henry Moore mesmo em frente!
Lembro-me que a primeira vez que a vi ali, fiquei escandalizada! Como podia uma escultura de Henry Moore estar ali “à mão” de qualquer um, onde as crianças brincam e sobem sobre ela? E ela lá continua..
em frente do imponente museu!
Dali também se vê o jato de água, lá em baixo no lago!
E a cidade velha fica logo ali
onde fica a catedral onde Calvino palestrou!
E de tantas catedrais que visitei pela minha vida fora, nunca referi uma das que mais profundamente ficou na minha memória: a Cathédrale Saint-Pierre de Genève ! Um edifício ligado à fundação da cidade, que vem do séc. IV, cheio de história até se tornar protestante no séc. XVI. Guilherme Farel pregou ali a reforma e a catedral foi despojada de tudo o que foi considerado supérfluo…
Hoje é também um edifício cívico onde tomam posse os corpos do governo cantonal.
Continua linda, lisa e limpa, com foi deixada depois de esvaziada…
É umas das catedrais que mais visitei, acho que mais do que a nossa Sé do Porto! Porque ía ali muitas vezes, passava ali algum tempo, desenhava, passeava, subia à torre, via Genève lá de cima e seguia para a escola….
Eu não sou uma pessoa religiosa mas sempre apreciei o ambiente gerado por uma catedral, sobretudo se for medieval, românica ou gótica! Eles sabiam como provocar sensações nas pessoas!
Ao fundo existe uma capela extraordinariamente bela, chamam-lhe “la chapelle des Macchabées” , porque dizem que os restos mortais dos Irmãos Macabeus estão lá. O estilo gótico num recanto de beleza que já foi usado como escola no tempo da reforma, que deixou por lá vestígios. Hoje está ali, recuperada e belíssima, onde apetece passar um bom momento de paz!
Na frente fica o largo que permite apreciar toda a imponência do edifício com a sua fachada neoclássica! Na realidade a catedral junta 3 estilos: românico, gótico e neoclássico!
Mais um passeiozinho e passei na Mairie, ou Hôtel-de-Ville, ou camara municipal da cidade. Sempre gostei muito daquele edifício, com origem no séc. XV e desenvolvido ao longo do século seguinte. Ali foi assinada a convenção de Genebra, que tem a ver com os direito humanitários em tempo de guerra!
Mas a torre em rampa é que sempre me fascinou! Aquela rampa foi construída no séc. XVI e permite chegar lá acima sem subir um único degrau!
O edifício é lindo, histórico e imponente!
Como não podia deixar de ser… passei na minha “casa”…
Não tive coragem de entrar, nem de pedir para subir até ao quarto 12.12, lá no 12º andar, de onde eu podia ver a planície até à fronteira de França, com o Mont Salève ao fundo…
Um dia eu vou faze-lo! Vou marcar uma ou duas dormidas na Cité Universitaire, para poder viver a sensação de estar ali!
Na época eu tinha uma motoreta pequenita de dar aos pedais, cá está ela estacionada em frente à Citè. É a do lado direito, tão fofinha com o capacete pendurado no guiador… (foto digitalizada)
Dei a volta ao edifício e a minha janela fica tão lá em cima! Afinal é um 12º andar, com vista panorâmica! Lá está ela na ponta da fecha…
O edifício é antigo mas muito bem conservado e situado! A cite é composta por 3 edifícios que albergam 600 estudantes de 70 nacionalidades diferentes! É uma verdadeira cidade, com direito a sala de cinema, restaurante, discoteca, lavandaria, supermercado e sei lá mais o quê!
Então subi ao Salève… aquele monte fantástico que eu via da minha janela e que visitei por diversas vezes subindo o teleférico. De moto, há muito tempo que não subia…
“Ao tempo que eu não subia ao Salève… chamam-lhe o Balcão de Genève, porque fica mesmo a seu lado, elevando-se a mais de 1.000 m de altitude, com uma perspetiva deslumbrante sobre a cidade. Eu via-o da janela do meu quarto, quando vivia na Citè Universitaire, e ele maravilhava-me a cada amanhecer, com o rio Arve a serpentear entre mim e ele, vindo dos Alpes. Quantas vezes por ali passeei, com neve e nevoa que tornava a perspetiva da cidade misteriosa e fantástica, quantas vezes eu senti que iria recordar aqueles momentos com nostalgia e uma vontade incontrolável de voltar para trás no tempo e reviver tudo de novo… e desta vez, 20 anos depois, revivi mesmo…”
Eu nunca me cansaria de olhar aquela cidade…
(continua)
Como te compreendo ao quereres partilhares este “cantinho” da tua vida com todos os que te acompanham. Gostei, particularmente, da forma genuína como transmites o teu “reviver”…
Obrigada!
Genève faz parte de mim, foi por ela que eu comecei a viajar de moto e a cada viagem pela Europa passo pela Suíça, como um ritual anual!
Já me perguntaram porque volto lá tão frequentemente, desta vez eu contei mais em pormenor porquê… 😀
Como sabe tão bem recordarmos aquilo que nos fez felizes, nem que tivesse sido só durante um espaço de tempo, curto ou longo não interessa, o essencial foi o que ficou dele !!!
É verdade!
São recordações para toda a vida…
Having read this I thought it was rather enlightening.
I appreciate you taking the time and energy
to put this short article together. I once again find myself personally spending way too much time both reading and posting comments.
But so what, it was still worthwhile!